Bebida alguma foi capaz de saciar-me, desde que... Tu sabes.
Tenho sede.
E não imaginar possível, à luz cruel destes dias, mãos capazes de albergar tanta água como aquela de que necessito para sobreviver, como que me entorpece os sentidos, e a esperança...
Tenho sede.
É um problema geométrico, percebes?
Culpa da mãe natureza, claro está.
Se ao menos não tivesse dotado o Homem de uma insana apetência pelo amor/tragédia, tudo seria bem mais fácil...
Mas não.
Fê-lo sedento de tudo aquilo não pode atingir, consciente desse facto, e pior ainda, incapaz de perceber os mistérios da vida, quando em desnorte, quando...
Vazia.
Tenho sede...
... E afogar-me-ei nas lágrimas que por mim vertestes, antes sequer de vos aperceberdes que tudo o que eu tinha era
Cinco horas de uma manhã qualquer, e ali estava ele, cansado e doente, em mais uma das suas inúmeras e vãs tentativas de afugentar o medo, da loucura, o desespero, da solidão.
O gélido cimento do chão, fiel servidor de aconchego aos inúmeros rascunhos que, amarrotados, por ali se amontoavam, era a prova de que já se havia esgotado a essência do seu coração, pois se já nem era capaz de escrever, o que mais lhe restava naquele mundo cruel?
Ecoavam pelos cantos, melodias natalícias que os "outros" teimavam em entoar, como que isso o fizesse feliz... Como se o Natal significasse outra coisa que não "o pior dia do ano", aquele em que o mundo fazia questão de recordar, aos velhos lobos solitários como ele, o quão miseráveis eram as suas vidas, o quão insignificante era a existência, quando não existia sequer alguém a quem desejar "Boas Festas"...
Ele, que sempre fora um sobrevivente, via-se agora condenado pelas dores, que na alma como nos dedos, o impediam de continuar, a escrever, a viver...
Olhou de soslaio para o mais que gasto calendário que trazia no bolso. Ele, que nunca perdera a noção dos dias, quis certificar-se de que não se havia enganado.
Mesmo que tivesse, o bulício que se instalara nas ruas como nos lares, os risos e os gritos de felicidade que as crianças não conseguiam conter, não enganavam ninguém: havia chegado "O" dia.
Havia planeado, ao longo de todo o ano, a sua própria festa de Natal.
Liberto de toda a tensão que um tal momento suporia, sorriu uma última vez, e fechando os olhos, permitiu-se a si mesmo um último pensamento: crianças, a brincar, felizes como ele nunca havia sido, e os seus pais, também eles satisfeitos, a contemplarem a beleza que existe na vida, através delas, dos seus olhos puros e inocentes que, esperava, jamais viessem a conhecer as misérias do "mundo real"...
O sol, incrivelmente quente e brilhante para um dia de Inverno, banhou-lhe a alma pela última vez.
O som de um disparo só passa despercebido quando as pessoas estão demasiado ocupadas para o ouvir... Quando o frenesim típico desta quadra cega e ensurdece o mundo.
Ele sabia-o.
E até hoje, nunca ninguém se preocupou em saber, por que motivo escolheu aquele homem, o dia de Natal para se despedir da vida.
Em boa verdade, ele não tinha uma única pessoa que pudesse sentir a sua falta... E assim sendo, tudo o que resta da sua passagem pelas nossas vidas, é precisamente este conto de Natal, pronto para ser lido por todos aqueles que encaram o mundo como sendo um paraíso, e a vida, como uma brincadeira de crianças... Crescidas.